Sunday, May 01, 2005

Cartas de Amor...

Imaginem que não fazem parte dos padrões ditos normais que a sociedade nos impõe.
Imaginem que arrastam as palavras, que não conseguem escrever letras perfeitas, que não conseguem articular um discurso mais elaborado que o de uma criança de cinco anos.
Imaginem que são espontâneos, que não têm o censor activado e que dizem tudo o que lhes passa pela cabeça, sem quaisquer descernimentos, que as emoções são vividas livremente, que reagem às coisas e já está!
Imaginem que a vossa diferença é suficiente para que a sociedade lhe atribua o rótulo de deficiência.
Agora, que estão em pleno auge da vossa imaginação, imaginem que saem à noite, que olham para uma miúda e se apaixonam!
Simples? Agora vamos ver a mesma história, mas com dois pontos de vista.
Ponto de vista destes Normais
Ela conheceu-o apenas porque os amigos queriam gozar com ela. O miúdo em questão foi-lhe apresentado exactamente porque era meio lerdo...parado, tonto, meio atrasado (isto da palavra MEIO é a cereja no topo do bolo!!)... entre eles era mais conhecido por... def!
É sempre bom perceber que isto não acontece apenas no reino da crueldade que normalmente é atribuido às crianças....mas tendo em consideração que no tempo de D. João IV uma pessoa de idade tinha cerca de 35 anos, eu imagino que hoje uma pessoa de 30 esteja ainda a curtir a primeira infância e por isso haja ainda tanta desculpa para a crueldade.(para os que não percebem, estou a ser irónica hein!!) Mas adiante... Eles foram apresentados e todos lhe disseram que ela seria a mulher ideal para ele. Ela ria-se juntamente com todos os outros, num misto de gozo e encabulamento...
A noite acabou, ele foi embora e os outros ficaram a rir da sua cara no momento em que a conheceu. Ela dizia que tinha medo e fazia caretas, e imitava-o, troçando dele e de todo o seu comportamento.
No dia seguinte ele apareceu, ela fez aquele ar de quem nunca o tinha visto, escondeu-se dele e tentou escapar-lhe várias vezes. Ele, persistente e sem nunca entender que ela o evitava, olhava-a sempre com um ar sorridente. Finalmente encheu-se de coragem e disse-lhe que tinha uma coisa para ela, e desapareceu.
Ela foi ter com os amigos e mais uma vez todos gozaram o prato! Ele tinha vindo atrás dela, como se ela alguma vez lhe desse bola!
Ele voltou a aproximar-se dela e entregou-lhe uma carta. Ela correu até aos outros e abriram a carta, leram-na e zombaram dela a cada palavra escrita com dificuldade, a cada letra trémula de quem aprendeu a escrever ontem, a cada declaração que ele lhe fazia. A carta acabou deitada a um canto e ela dizia alto o quão estúpido o achava por ter ousado em escrever-lhe uma carta de amor.
Ponto de vista deste considerado Não normal
Ele saíu de casa para se ir divertir um pouco. De repente, no meio do barulho e das luzes, de gargalhadas e gente aos pulos, ele é apresentado a uma rapariga.
Ele está no meio de risos, dizem-lhe que ela seria a mulher ideal para ele. Ele sorri, ela também. Ele sorria um feliz longínquo que ela jamais sorrirá, longe da maldade a que tudo aquilo cheirava, longe dos risos cruéis e apenas contente por estar num local público como toda a gente, por estar a ser apresentado a uma rapariga, por se estar a sentir integrado. A noite dele foi feliz, porque se divertiu e conheceu uma menina de sorriso bonito.
Pegou num papel e com toda a arte desenhou palavras de amor. Numa caligrafia de menino que mal sabe escrever ( e sabe-se lá com que esforço para que tudo ficasse perfeito), disse-lhe que a amava, que queria ficar com ela para sempre até ao casamento. Perguntava-lhe se podia ter a morada e o telefone, para lhe escrever e telefonar para sempre. E dizia-lhe que estava feliz por a ter conhecido e porque o Benfica ia ganhar o campeonato. Ele falava do Benfica e dos sentimentos que tinha por ela com a maior inocência do mundo e no fim assinou a carta com o nome completo e dizia que aguardava resposta. Selou-a num envelope onde desenhou um coração e escreveu o nome dela e o seu.
Nessa noite voltou para lhe entregar a carta. Viu-a...encheu-se de coragem e quase ao fim da noite entregou-lhe aquela declaração de amor com pedido de resposta. Sorriu quando ela a recebeu e foi logo embora, na esperança que ela tenha uma carta para ele ou que lhe dê a morada para ele escrever mais.
Esta história aconteceu, feliz e infelizmente.
Imaginem só que se ainda fossemos capazes de pegar numa caneta e num papel e que se ainda escrevessemos cartas de amor, talvez pudéssemos ser menos cruéis....
Acenos da varanda central,
Viscondessa da Porcalhota

1 Comments:

Blogger Inês Ramos said...

Uauuuu... É triste mas lindo.

Este conto só prova que ser aquilo que a sociedade considera «normal» por vezes implica ser-se politicamente/socialmente correcto, hipócrita e dissimulado.

Peço desculpa por adoptar aqui a postura que postulam as ideologias de J.J.Rosseau no que respeita ao «Mito do Bom Selvagem» mas neste caso concordo com elas.

Aqueles que muitas vezes são rotulados de «defs» ou «freaks» são pessoas mais genuínas que por anomalia genética ou acidente não se deixaram corromper e deturpar pela maldade que corrói a sociedade adulta e ainda conservam em corpos adultos a pureza inocente que todos temos nos nossos primeiros anos de vida.(Se bem que há crianças que conseguem ser igualmente crueis.)

Creio que os verdadeiros «anormais» neste caso, são os ditos «amigos» que quiseram gozar com a rapariga e tiveram o gesto monstruoso de usar o miúdo para isso de modo frio e calculista... Sem se importarem com os sentimentos dele, com os danos que lhe poderiam causar, das feridas que lhe poderiam abrir... Um miúdo com uma riqueza interior muito maior do que a que eles alguma vez irão ter... Até porque duvido que saibam o que isso é. Devem ser dos tais que já o meu querido Oscar Wilde dizia que «sabem o preço de tudo e o valor de nada.»

Oh querida Viscondessa, é triste ver como por vezes o ser humano é fútil e vazio na sua 'normalidade'...

11:04 PM  

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